O Bolsa Família, um dos maiores programas de transferência de renda do mundo, comemora duas décadas de existência. Inicialmente concebido como uma iniciativa central do governo Lula para erradicar a fome no Brasil, o programa evoluiu drasticamente ao longo dos anos, ampliando seu alcance e impacto.
Contudo, apesar de seus inegáveis méritos, o flagelo da insegurança alimentar continua sendo um desafio significativo no país.
Origens e Evolução do Bolsa Família
Em 2003, apenas um mês após assumir a presidência, Luiz Inácio Lula da Silva lançou o Fome Zero, um ambicioso programa que visava acabar com a fome que afetava cerca de 14 milhões de brasileiros naquela época.
Esta iniciativa serviu como alicerce para o lançamento, no ano seguinte, do Bolsa Família, um programa de transferência de renda ampliado e aprimorado.
Expansão Contínua e Investimentos Recordes
Ao longo de suas duas décadas de existência, o Bolsa Família testemunhou um crescimento exponencial. Atualmente, o programa atinge impressionantes 20,8 milhões de famílias, mais que o dobro de seu alcance inicial em 2004. Além disso, o valor médio pago a cada beneficiário aumentou dez vezes, passando de R$ 66 para R$ 682.
Um salto significativo ocorreu durante a pandemia, quando o presidente Jair Bolsonaro ampliou substancialmente os investimentos no programa.
Com o retorno de Lula à presidência para um terceiro mandato, o Orçamento de 2023 destinou a quantia recorde de R$ 168 bilhões ao Bolsa Família, um valor próximo ao destinado ao Ministério da Educação, refletindo a prioridade conferida ao programa.
Impactos Positivos e Reduções Notáveis
Embora não tenha alcançado o objetivo inicial de erradicar completamente a fome, o Bolsa Família trouxe diversos benefícios tangíveis à sociedade brasileira.
Redução da Miséria e Melhoria das Condições de Vida
Um estudo realizado pela FGV/Ibre revelou que, entre 2019 e 2023, o número de pessoas abaixo da linha da pobreza (renda per capita mensal de até R$ 218) caiu de 15,4 milhões para 9,5 milhões, evidenciando o impacto do programa na redução da miséria.
Além disso, pesquisas conduzidas pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV) demonstraram que, com o Bolsa Família, o percentual de crianças na primeira infância vivendo em famílias extremamente pobres diminuiu drasticamente, de 91,7% para 6,7%.
Outros Benefícios Observados
Estudos adicionais apontam impactos positivos do programa em diversas áreas, como:
- Aumento da frequência escolar, especialmente entre meninas
- Queda na mortalidade infantil
- Redução das desigualdades regionais
- Efeito multiplicador no Produto Interno Bruto (PIB)
Aceitação Política Transcendente
O sucesso do modelo de transferência de renda do Bolsa Família o tornou uma unanimidade política, transcendendo divisões partidárias. Suas raízes remontam ao Bolsa Escola e ao Comunidade Solidária, ambos iniciados durante o governo FHC. A destinação de recursos para famílias carentes ajudou a construir a imagem de Lula, especialmente no Nordeste, região historicamente mais pobre do país, onde o presidente adquiriu uma sólida base política.
Reconhecendo a importância do programa, mesmo Jair Bolsonaro, defensor de uma menor participação estatal, optou por mantê-lo, embora tenha alterado seu nome para dissociá-lo dos governos petistas. Durante a pandemia, Bolsonaro ampliou significativamente os recursos destinados ao programa, atingindo o pico de R$ 360 bilhões em 2020, no auge da crise sanitária.
Desafios e Falhas Persistentes
Apesar de seus méritos inegáveis, o Bolsa Família enfrenta desafios e falhas que precisam ser abordados.
Fraudes e Benefícios Indevidos
Uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que, em 2023, 4,7 milhões de famílias receberam indevidamente recursos do Bolsa Família, gerando um prejuízo de R$ 34,2 bilhões. Aproximadamente 40% dessas famílias possuíam renda superior à declarada no cadastro, conforme admitido pelo Ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias.
Fila de Espera e Gargalos
Enquanto algumas famílias recebem benefícios indevidamente, outras 700 mil aguardam na fila para ingressar no programa. No entanto, o governo enfrenta dificuldades para incluir novos necessitados, uma vez que o teto mensal de gastos de R$ 14 bilhões tem sido ultrapassado.
Além disso, uma das principais condicionalidades previstas, a frequência escolar, tornou-se um gargalo: um em cada quatro beneficiários em idade escolar não frequenta a sala de aula regularmente.
Falta de Perspectiva de Longo Prazo
Um dos problemas mais graves, no entanto, é a falta de uma estratégia de longo prazo para a autossuficiência dos beneficiários. Um estudo do Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS) constatou que 20,4% dos dependentes de 7 a 16 anos que estavam no Bolsa Família em 2005 (2,3 milhões de pessoas) ainda permanecem no programa, após duas décadas, sem encontrar a chamada “porta de saída”.
Cristovam Buarque, criador do Bolsa Escola e ex-ministro da Educação no primeiro mandato de Lula, critica essa situação: “Não tem uma estratégia para que um dia o Brasil não precise mais de Bolsa Família. Impregnou-se no país a ideia de que esse é um programa permanente”.
Buscando Soluções Estruturais
Para enfrentar esses desafios e promover a autonomia dos beneficiários, especialistas apontam a necessidade de soluções estruturais e um ambiente propício ao desenvolvimento.
Condições Macroeconômicas Favoráveis
Écio Costa, professor de economia da Universidade Federal de Pernambuco, destaca a importância de “boas condições macroeconômicas, uma inflação moderada, um governo responsável fiscalmente e que trabalhe muito a geração de empregos através da atração de investimentos”.
Aprimoramento das Políticas Públicas
Daniel Duque, pesquisador da área de economia aplicada da FGV/Ibre, enfatiza a necessidade de “políticas públicas mais bem trabalhadas e aprimoradas para acelerar o ritmo de redução da pobreza”. Um exemplo é o impacto da inflação na insegurança alimentar, com os preços dos alimentos aumentando significativamente desde a pandemia.
Exemplos Internacionais e Programas Complementares
O Brasil pode buscar inspiração em exemplos internacionais e complementar o Bolsa Família com outras iniciativas para promover a autossuficiência dos beneficiários.
O Modelo Mexicano: Prospera
O programa mexicano Prospera, lançado em 2001 como Oportunidades, três anos antes do Bolsa Família, evoluiu para incluir acesso a microcrédito, cursos profissionalizantes e vagas no ensino superior a partir de 2014. Essa abordagem integrada tem colhido bons resultados, com a ONU relatando que 3,1% da população mexicana enfrenta a fome, uma queda de 1 ponto percentual desde 2006.
Programas de Renda Mínima
Países desenvolvidos, como a Finlândia, experimentaram programas de renda básica, garantindo um piso mínimo de renda para seus cidadãos. Embora os resultados tenham sido mistos, com muitos beneficiários permanecendo desempregados, esses programas visam garantir um padrão de vida digno e evitar situações de fome extrema.
Esforços do Governo Atual
O governo Lula está ciente da necessidade de criar condições para que os beneficiários possam se tornar autossuficientes e deixar a rede de proteção do Bolsa Família.
Combate às Fraudes e Melhoria do Cadastro
Wellington Dias, ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, relata que o governo está investindo na eficiência do cadastro, cruzando dados de emprego e Previdência, realizando visitas presenciais para confirmação de informações e firmando parcerias com órgãos de controle para combater fraudes.
Programas Complementares e Inclusão Socioeconômica
O governo busca promover a “inclusão socioeconômica” dos beneficiários por meio de programas complementares, como Farmácia Popular, Minha Casa, Minha Vida, Pé de Meia, requalificação profissional e aquisição de alimentos de pequenos produtores.
Além disso, a iniciativa Brasil sem Fome foi lançada para articular mais de 80 programas e ações intersetoriais em 24 ministérios, com o objetivo de combater a miséria de forma integrada.
Meta Ambiciosa: Saída do Mapa da Fome em 2026
Segundo Wellington Dias, o compromisso de outros países é alcançar a meta da ONU de zerar a desnutrição até 2030. No entanto, o presidente Lula tem a ambiciosa meta de anunciar a saída do Brasil do Mapa da Fome já em 2026, no final do atual mandato.